Pular para o conteúdo principal

Um olhar sobre Theft, and wandering around lost do Cocteau Twins.





É de conhecimento de todos [que conhecem o Cocteau Twins] que a banda não é lá muito apegada à letras inteligíveis – e isso não é algo ruim, muito pelo contrário, essa é uma das principais características da banda, o que a torna ainda mais única, interessante e misteriosa. 


Porém em Theft, and Wandering Around Lost a banda seguiu por um caminho diferente, trazendo uma letra não somente inteligível, como muito impactante, forte e reflexiva. A faixa faz parte do 7º álbum de estúdio, “Four-Calendar Café”, e é uma preciosidade vocal e lírica. 


Bem, hoje aqui no Cantinho, pretendo trazer minhas reflexões (achismos) totalmente pessoais sobre essa música espetacular. Eu não procurei por comentários da Elizabeth Fraser ou da banda sobre a música, então não sei até onde minha interpretação está certa, mas quero colocar isso para fora, rs. 






Quanto mais escuto e leio a letra dessa música, penso que o eu lírico sofreu um abuso


A música é bem incisiva ao dizer que o corpo do eu lírico pertence somente a ele, além de já começar dizendo que “o homem é um agressor”. Porém, talvez, a parte mais explícita e chocante seja justamente o refrão, onde o eu lírico indaga ao infrator sobre seu corpo ter o dado permissão para que certos atos fossem cometidos contra ele.


Eu não sou fluente em inglês, minha leitura tende a ser boa, embora não perfeita, então procurei a ajuda do Chat Gepeto e do Gemini para traduzir a letra e entendermos as estrofes: 


O homem é um agressor/infrator / Ele tirou o meu valor / E eu devolvo a vergonha dele / E eu tomo de volta o meu poder / Meu corpo é meu / Meu corpo é só meu / E eu mereço proteção / E eu posso criá-la para você 

Foi isso que meu corpo disse? Use-me, Esgote-me, Caia em cima de mim/

Foi isso que meu corpo disse? Engula-me, Eu já estou morta 

Eu tenho uma sensação das coisas / Choro e estremeço a parede por você / E estou me movendo para envenenar o amor / E afogar as estrelas acima de você 

Meu corpo é meu / Meu corpo é só meu / E eu mereço proteção / E eu posso criá-la para você 

Foi isso que meu corpo disse? Use-me, Esgote-me, Caia em cima de mim/

Foi isso que meu corpo disse? Engula-me, Eu já estou morta 

Continuo me cortando nos limites da realidade (realidade) / Continuo me cortando nos limites da realidade (realidade) 

Foi isso que meu corpo disse? (Continuo me cortando nos limites da realidade) Use-me, Esgote-me, Caia em cima de mim/

Foi isso que meu corpo disse? (Continuo me cortando nos limites da realidade) Engula-me, Eu já estou morta 


É uma letra que definitivamente me faz refletir. A música já começa dizendo que existe um infrator, um homem, e este homem fez algo muito vergonhoso, ele tirou o valor de alguém (do eu lírico). O eu lírico, ao apontar para o agressor que seu ato era algo para se envergonhar, recupera sua autonomia, o poder sobre sua vida, pois quem precisa se envergonhar é justamente quem cometeu a agressão. Até então, não sabemos a natureza do ato, embora esteja implícito sua repugnância


Na segunda estrofe, o eu lírico começa a ser incisivo ao dizer que seu corpo pertence somente a si e a mais ninguém, o que nos leva a pensar que o roubo do valor tem a ver com uma violação de seu corpo, algum tipo de abuso. Ele diz “eu mereço proteção e eu posso criá-la para você” dando a entender que ele está pronto para se proteger. 


Para mim o eu lírico é uma mulher, por tudo o que é dito, como é dito e também pela própria intérprete da música ser uma mulher. O refrão é ainda mais explícito e sugestivo. O eu lírico faz uma pergunta ao agressor, ou talvez a si mesmo, num momento de auto culpabilização: “Foi isso que meu corpo disse?”. Para mim, essa frase dá a ideia de “Será que passei essa impressão?”, “Será que dei esse tipo de permissão?”. O que se segue dá ainda mais um contorno de abuso físico e, indo além, sexual: “Use-me, esgote-me, caia em cima de mim [...] Engula-me, eu já estou morta”. É a mais pura objetificação do corpo humano. 


O que se segue, parece talvez, o eu lírico num limiar de desorientação após o trauma, quem sabe? Quando caminhamos para o final, em “Continuo me cortando nos limites da realidade (realidade)” e “Eu já estou morta” talvez seja o eu lírico num estado despersonalizado, estando fisicamente vivo e presente, mas mentalmente distante, sendo afogado pelo trauma resultante do abuso. 


Theft, and wandering around lost, como o título já sugere, fala de um roubo (de valor por conta do abuso) e de uma consequência: “vaguear perdida”, estado mental que o eu lírico se encontra após o abuso. A letra é bem verossímil ao descrever sobre algo que, infelizmente, acomete muitas mulheres. A violação do corpo, a culpabilização e a dificuldade de seguir em frente, de deixar o trauma para trás. 


A letra mostra que, apesar de toda a despersonalização, o eu lírico, de alguma forma, consegue devolver a vergonha a quem de fato pertence e inicia uma busca pela recuperação do seu valor e reitera que ninguém, absolutamente ninguém, tem direito de fazer o que bem entende com seu corpo. O eu lírico não dá permissão e irá protegê-lo. 







Theft, and wandering around lost é definitivamente uma das músicas mais marcantes do Cocteau Twins. O instrumental e a voz da Lizzie são estranhamente reconfortantes, embora tristes – e eu amo a interpretação que ela traz para a música. 


É muito interessante que em 1993 já se falava liricamente sobre abuso e violação do corpo feminino, e é muito mais interessante vindo do Cocteau Twins que costuma ter letras enigmáticas e um estilo mais etéreo, voltado ao dream pop e ao ethereal wave, então fiquei pessoalmente muito feliz e tocada. 


Acredito que seja uma música que todos deveriam escutar, porque é realmente uma preciosidade, um manifesto, um grito. Uma porta-voz do que muitas mulheres vivem e do que muitas que não viveram, andam constantemente com medo de viver.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Conde de Monte Cristo, Alexandre Dumas (filme x livro)

Finalmente pude terminar a leitura de "O Conde de Monte Cristo", este grandioso clássico francês de autoria de Alexandre Dumas. Quando digo finalmente, não é por ser uma leitura penosa, muito pelo contrário, mesmo sendo um calhamaço de 1304 páginas (Martin Claret), a obra é instigante e emocionante do início ao fim.  Dumas constrói grandes diálogos, que conversam com a filosofia, as artes, que referenciam diversas outras obras, da mitologia a Shakespeare. Muito inteligente e perspicaz, assim como os seus personagens, especialmente aquele que dá nome à obra.  Hoje, farei uma resenha um pouco diferente, será mais um paralelo entre a adaptação cinematográfica de 2002 (meu primeiro contato com essa obra de Dumas) e o livro, citando 05 modificações pontuais que foram feitas. Portanto, haverá alguns  spoilers , hehe. Se você assistiu a alguma versão cinematográfica e ainda não leu o livro, aconselho firmemente que você leia antes de acompanhar a minha resenha, pois acredite, al...

Love Alarm | 1ª e 2ª temporada

  Olá, dorameiros de plantão! Óia quem voltou para papear sobre dorama :D Bem, eu, viúva de Nevertheless e de Song Kang, queria assistir um dorama novo (com 152534343 doramas pela metade, és) e juntei o útil ao agradável: dorama conhecido + Song Kang lindo e perfeito = Love Alarm. Bom, comecei a assistir o bendito dorama e o que posso dizer, agora que acabei ambas temporadas, é que se eu soubesse que seria desse jeito, eu nem tinha começado, haha (rindo de nervouso). Sabe aquele famoso meme? Intonces...  Bom, para quem está chegando agora, Love Alarm é um dos poucos doramas que possui mais de uma temporada e é bem conhecido na dramaland. Baseado na webtoon homônima,  o triângulo amoroso entre uma estudante e dois garotos que gostam dela é complicado pela existência de um aplicativo de celular que toca um alarme sempre que alguém que tem sentimentos por você está num raio de dez metros . Já dá para imaginar a treta, né? Eu irei papear sobre ambas temporadas de uma vez...

BABYMONSTER é real

No final de 2022, em meio ao caos que a YG estava vivendo, com uma debandada de artistas dos mais variados segmentos, a bomba veio: NEXT MOVEMENT e sete silhuetas - e é claro que a internet foi à loucura (e me incluo nessa). A YG está para debutar um novo grupo feminino há tempos. Desde meados de 2020, já havia rumores de um possível girlgroup chamado 'BABYMONSTER', ser lançado sob o selo da empresa e a confirmação, depois de anos de migalhas, veio aí para a alegria dos fãs.  No dia 1 de janeiro, a YG disponibilizou um vídeo teasear, em um formato parecido com um documentário, onde apareciam as integrantes do grupo no dia-a-dia de treinamento e também comentários de artistas da empresa, como os meninos do Winner, o Chanhyuk do AKMU, a Lisa e a Jennie do BLACKPINK e o antigo seo da YG, Yang Hyun Suk. Depois desse lançamento, que, foi muito bom por sinal - tinha como trilha sonora uma música super maneira do 1TYM, um grupo de hiphop que fazia parte da YG e que tinha ninguém menos...