Lançado em 1968, O Meu Pé de Laranja Lima é um clássico infantojuvenil brasileiro, de autoria de José Mauro de Vasconcelos. É lindamente doloroso e acompanha a vida de uma criança de 5 anos de idade, que, em meio as mazelas da vida, acaba encontrando beleza nos lugares e nas pessoas mais improváveis.
Eu comecei a ler este livro em meados de 2017, mas eu estava enfrentando uma ressaca literária bem forte naquela época, então por mais cativante que a leitura fosse, eu acabei abandonando. Então agora, no final de 2024, travada com A Fúria dos Reis, resolvi que leria esse livro do José Mauro, porque eu tinha boas lembranças do pouco que li e porque é um clássico da literatura brasileira.
O Meu Pé de Laranja Lima começa despretensioso, levinho, divertido, e acompanha a vida de um garotinho de 5 anos chamado Zezé, que é muito imaginativo, inteligente, curioso e serelepe. Como qualquer criança, Zezé faz muitas perguntas e é bem bagunceiro. Sua família, bem numerosa, enfrenta a pobreza: são muitos filhos, o pai está desempregado, a mãe precisa trabalhar para suprir a casa, assim como algumas de suas irmãs.
Em determinado momento, a família de Zezé se muda para uma casa menor, mas que possui um jardim com algumas árvores frutíferas. Cada irmão escolhe uma e acaba sobrando para Zezé, o famoso Pé de Laranja Lima.
Hoje farei uma resenha simples, talvez calorosa e emotiva, e que, consequentemente, contém spoilers. Sem mais delongas, simbora.
A partir daqui, acompanhamos muito da inocência e do imaginativo de Zezé, que rapidamente faz uma grande amizade com o Pé de Laranja Lima, que neste caso, não é uma árvore frutífera qualquer, ele fala, entende e aconselha o garoto. Se torna comum a figura do Zezé sentado embaixo do pé — que fora carinhosamente apelidado de Minguinho e Xururuca —, confidenciando segredos, contando sobre seu dia e suas aventuras.
Assim, Minguinho se torna uma parte crucial da vida e da infância de Zezé, por ser seu amigo e confidente, o seu escape. Eles conversam e brincam juntos, principalmente de cowboy. Também, Minguinho era um grande observador, já que o quintal se transformava em um grande mundo para Zezé e seu irmão mais novo, Luís, que sempre estava por perto. Portanto, o mundo imaginativo era um refúgio muito importante para Zezé, era como ele via a vida mais bonita, mesmo com os maus bocados em casa.
Zezé era também um garotinho muito curioso; ele tentava sempre aprender palavras novas, especialmente com seu tio Edmundo, e sempre tentava entender a vida. Ele negociava suas bolinhas de gude, suas cartinhas, engraxava sapatos, vendia folhetos de canção... além de ser muito artístico: cantava e queria ser poeta. Em determinado momento da narrativa, Zezé pede à sua mãe uma roupinha de poeta e ele fica lindo *_*
(...)
Nosso pequeno poeta, mesmo para a sua idade, era um garoto muito desenvolvido, então ele rapidamente entra na escolinha, onde se dá muito bem. Era muito comportado e excelente aluno. Um dos momentos mais bonitos dessa fase, é quando sua professora começa a pagar seu lanche, ao perceber que Zezé não tinha condições para comprar... então Zezé diz à professora que havia outras crianças pobres na escola, e pede então, que ela deixe de dar para ele vez ou outra, para dar a essas crianças também :(
Aqui, temos um claro exemplo de como o Zezé era um menino não só esperto e imaginativo, mas muito doce e consciente, mesmo na sua inocência. Ele ainda era muito, mas muito bom e amoroso com seu irmão mais novo, mesmo sendo uma criança tão pequena quanto.
Em determinado momento da história, Zezé começa a se interessar por "morcegar", que seria pegar morcego em veículos, a famosa rabeira. O carro mais visado por todos, era o carrão de um senhor bem de vida chamado Manuel Valadares, vulgo Portuga. Um dia Zezé resolve investir nessa empreitada, mas é surpreendido pelo Portuga, que lhe dá umas boas palmadas (e na frente de muita gente). O garoto então, se sentindo muito humilhado, fica revoltado com o Portuga e o jura de morte (kkkkkkkkkkkkk), dizendo que quando crescesse, iria lhe matar.
Após o fatídico acontecido, Zezé fica por um bom tempo evitando passar perto da mercearia onde tudo aconteceu, e tenta evitar também o português, mas sem muito sucesso, pois ambos transitavam pela Rio-São Paulo, que era o caminho do Zezé até a escola. Então o Portuga passava pertinho dele com o carro, mexia com ele, buzinava, e o garoto só ignorava... kkkkkk.
Porém um dia, tudo mudou. Em uma tarde, Zezé resolveu aprontar uma no quintal de casa e acabou cortando o pé com um caco de vidro. Sua irmã fez o que pôde e limpou a ferida, mas sem fechá-la. No dia seguinte, Zezé precisou continuar com a sua rotina, e pegou o caminho para a escola pela Rio-São Paulo, mas fora mancando por conta do corte. Ao caminhar pela BR, o portuga passa então de carro ao seu lado, bem devagarinho, e começa a buzinar, a perguntar se ele havia machucado e tudo mais. O garoto tentou ignorar, mas depois de um tempo, simplesmente aceitou sua derrota e começou a conversar com o seu Manuel.
Tomando conhecimento da situação, o Portuga oferece então uma carona para Zezé, que aceita. No caminho, o Portuga leva o garoto até a farmácia, onde sua ferida é limpa e fechada com ponto. Depois ainda, pagou-lhe algo para comer e beber... e assim, tudo mudou.
Com tanta gentileza, Zezé rapidamente cai de amores pelo Portuga e o Portuga também cai de amores pelo menino, e então uma grande amizade se inicia. Eles começam a passear de carro, a conversar sobre muitas coisas. Zezé finalmente encontra em um adulto, compreensão, carinho e amor. O Portuga era muito cuidadoso, se importava de verdade com o garoto, ensinava coisas, via suas inúmeras qualidades, pedia para ele diminuir com os palavrões...
E essa amizade surge em um momento em que a história deixa de ser leve e divertida, para ser mais triste e pesada. Porque quando o Zezé fazia arte e apanhava, eu particularmente achava que eram umas pomadas, mas não, eram realmente surras, era violento. Então em casa, essa criança não enfrentava só a pobreza ou a falta de compreensão, mas também violência física e emocional. A família realmente passava dos limites. O garoto era xingado, diziam que ele "não deveria ter nascido", apanhava violentamente e muitas vezes por... nada.
Então o Portuga, assim como o Minguinho, surge como uma figura de luz e escape, para todo o horror que o Zezé vivia em casa. Uma das surras foi tão brutal (de sua irmã e irmão), que ele ficou doente, de cama, com um dente quebrado, rosto sangrando e ficou uma semana sem ver o Portuga. Se não me falha a memória, ainda, depois dessa surra, ele ainda leva outra (de seu pai) por literalmente nada... Após uma semana se recuperando, ele finalmente encontra com o Portuga e conta tudo para ele, que fica muito emocionado. Mas a parte mais dolorosa é que, ao decidir contar para o amigo tudo o que ele passava em casa, ele conta em tom de despedida, porque ele simplesmente não queria mais viver... uma criança de 5 anos de idade :(
Após esses acontecidos, o Portuga e Zezé resolvem ir pescar, e, em determinado momento, Zezé nada no rio e o Portuga vê todas as marcas, manchas e cicatrizes no corpinho do garoto e fica novamente comovido. É aqui que Zezé pede para o seu amigo ser também seu pai, e o Portuga diz que não pode adotar ele, porque não é tão simples, mas que a partir daquele dia ele seria como um pai para ele, sim.
Nesta parte tem, inclusive, uma passagem muito tocante, que é quando Zezé diz que irá matar o próprio pai.
"Funguei compridamente.
— Não faz mal, eu vou matar ele.
— Que é isso menino, matares teu pai?
— Vou, sim. Eu já até que comecei. Matar não quer dizer a gente pegar o revólver de Buck Jones e fazer bum! Não é isso. A gente mata no coração. Vai deixando de querer bem. E um dia a pessoa morreu." (p.149).
O Meu Pé de Laranja Lima se torna bem sombrio e avassalador do meio para frente, onde percebemos essa realidade mais dura com a qual Zezé vive. Ele apanhava de, praticamente, todos os membros da casa (com exceção de sua irmã Glória, que geralmente o defendia), e "bater" no Zezé era simplesmente algo comum. Então esses momentos de leveza, com Minguinho ou com o Portuga, surgem como um respiro e um momento de alívio e alegria na vida da criança.
Logo, há dois momentos bem tristes do livro: 1) quando Totoca diz a Zezé que o Minguinho será derrubado, por conta da expansão da rua; e 2) Quando, infelizmente, o Portuga morre tragicamente ao ser atingido, juntamente com seu carro, pelo trem Mangaratiba.
Ao receber a notícia da morte do Portuga, Zezé fica desolado a ponto de adoecer e quase morrer. Ele fica muitos dias de cama, e a família achando que era por causa do Minguinho, que estava para ser derrubado. Mas o que ninguém sabia, era que Zezé estava em um profundo luto por conta de seu grande amigo, o Portuga Manuel Valadares.
Quando penso sobre isso, me vem na cabeça o quanto a família dele não só, não o compreendia, mas como também estava totalmente alheia à vida do garoto a ponto de não saber de algo tão importante. Tá, que o Zezé estava mantendo segredo, todavia, não acho que a família se interessava o suficiente pelo o que ele fazia ou deixava de fazer.
Por fim, tivemos então a recuperação de Zezé, que sim, sobrevive, mas já não acorda mais como a mesma criança. Diziam tanto que ele era precoce, e ele teve que amadurecer precocemente mesmo. Com tanta dificuldade, com a pobreza, a violência, mas especialmente o luto: perder alguém que você ama tanto, a única pessoa que o compreendia, e sem poder externar isso — e com apenas 5 anos de idade.
Então, assim como o Portuga, vai-se embora também a inocência dessa criança, sob a figura de Minguinho.
Eu não esperava que este livro fosse me impactar tanto. Eu pensei que fosse seguir como uma narrativa mais leve e divertida, mas ela tem uma mudança a partir do capítulo 4 (e eu não parei de chorar após isso). José Mauro foi de uma delicadeza enorme ao escrever uma história tão triste, mas com picos de leveza, onde uma criança encontra felicidade em simples momentos da vida, no seu imaginativo e em pessoas que ele não esperava. No fim, ele encontrou mais carinho e compreensão na rua, do que em casa.
Provavelmente essa história se passava nos anos 20, onde as coisas eram diferentes, a questão da pobreza era ainda mais complicada, e a violência contra a criança, as surras, não era tão problematizada como hoje. Uma surra desproporcional era tratada como correção e ficava por isso mesmo. Fico pensando em quantos Zezés não existiram e ainda existem, crianças que tiveram sua infância e inocência roubada, crianças que tentam ver beleza, mesmo em tanta escuridão.
Ainda, é muito bom saber que existem pessoas como o Portuga, que iluminam a vida de outras pessoas.
O Meu Pé de Laranja Lima é merecidamente um clássico, é um livro muito emocionante, instigante e necessário, e o Zezé, o Portuga e o Minguinho estarão sempre eternizados.
Grande José Mauro de Vasconcelos.
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